“O Brasil Trigueiro dos Raios Fúlgidos”
A pergunta foi feita a Doutor Vernáculo por uma criança, ao término da cerimônia comemorativa de 7 de setembro. O desfile havia sido emblemático; as pessoas estavam eufóricas; os militares mostraram-se exemplares nos disciplinados movimentos e manobras; porém, algo perturbava a curiosa criança espectadora que, aproximando-se do mestre no palanque, fez uma interessante pergunta:
– Doutor Vernáculo, quando se canta o hino, o verso "Brasil, um sonho intenso" vem antes de "Deitado eternamente em berço esplêndido"?
Sua dúvida chamou à atenção o mestre. Na verdade, perguntou a jovem no lugar de todo o Brasil. Com efeito, temos um hino nacional de beleza singular e de melodia envolvente e de depuração linguística genuína. Talvez o fato de ser tão perfeito tenha provocado o provável esoterismo que o cerca – a criança tinha dúvida sobre a ordem dos versos na canção, mas quem de nós um dia não hesitou na pronunciação dos complicados termos do hino?
Os olhos da criança, mostrando-lhe a dúvida, retomaram lembranças marcantes. Em certa ocasião, Doutor Vernáculo havia perguntado, em sala de aula, repleta de profissionais da área jurídica:
– Qual o sujeito da oração, nos primeiros versos do hino nacional: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / De um povo heróico o brado retumbante”?
As respostas não demoraram, até porque todos os presentes eram graduados ou pós-graduados, sentindo-se na necessidade “cívica” – e por que não dizer “etária” – de responder ao teste com exatidão. Uns diziam “Ipiranga”; outros, “margens”; um grupo defendeu o “brado”; outro, o “povo”; houve até quem preferiu se calar, ao deparar com as multifacetadas possibilidades... Lamentavelmente, todos falharam.
A ocasião – cômica, se lamentável não fosse – havia demonstrado que aquela pergunta traduzia o desconhecimento do hino nacional pelo povo brasileiro. O primeiro verso do hino, assim como tantos outros que o seguem, vêm na ordem sintática invertida, devendo-se ler:
“As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico.”
Nessa medida, o sujeito já se apresenta claro: “As margens plácidas do Ipiranga”.
Esse momento, pinçado no dia a dia de uma sala de aula do mestre, passou-lhe pela mente como um raio, de modo instantâneo. Sorrindo para a jovem que o questionara, o mestre se agachou, estendendo-lhe a mão e disse:
– Querida jovem, vou lhe contar uma história.
A menina arregalou os olhos, demonstrando interesse.
– Nosso hino nacional é uma das poesias mais lindas que existem, você sabia?
A criança acenou afirmativamente, concordando com Doutor Vernáculo, que prosseguiu:
– Todos nós cantamos o hino com devoção e amor à pátria porque o hino e a bandeira
são símbolos importantes para uma nação.
Mais uma vez a criança concordou com o mestre, que usava uma linguagem simples para transmitir-lhe tema de intensa complexidade.
– Então, devemos conhecer bem nosso hino para perceber, ao longo dos versos, que "Brasil, um sonho intenso" vem antes de "Deitado eternamente em berço esplêndido". O primeiro enunciado aparece na 4ª estrofe, enquanto o segundo surge na 8ª estrofe.
A criança ouviu a resposta, apreciando o aprendizado e, ainda, perguntou ao mestre:
– Doutor Vernáculo, qual o sentido do verso “És belo, és forte, impávido colosso”?
– Minha jovem, o poema vem, sim, repleto de nomes difíceis, pouco conhecidos por nós. São adjetivos arcaicos, porém nomes que exteriorizam sentimentos mágicos de engrandecimento da pátria. É na utilização desse rico vocabulário – quase “semicompreensível” –, que está a elegância poética do nosso hino. Devemos ter curiosidade pela letra e descobrir os seus significados. Saiba que todos os cidadãos brasileiros deveriam agir como age agora, minha querida.
Enquanto a jovem sorria, o mestre prosseguiu:
– Portanto, o verso pode ser assim traduzido:
“És belo, és forte, destemido gigante”.
Trata-se de menção respeitosa a nosso país, que possui significativas extensões.
De fato, o autor Joaquim Osório Duque Estrada – poeta e crítico literário – valeu-se de sabedoria elogiável que, somada à sensibilidade artística do músico Francisco Manuel da Silva, permitiu a criação de hino “deliciosamente” erudito. A razão das aspas anteriores pôde ser percebida pelo mestre nos olhos da criança, ao descobrir o desafiador significado da expressão que a deslumbrava: “impávido colosso”. A mesma sensação de prazer teria a jovem ao descobrir que “margens plácidas” são margens serenas; que “raio vívido” é raio brilhante; que “terra mais garrida” é terra mais alegre, florida; ou, ainda, que “clava forte” é arma forte – expressões espalhadas pelo hino.
Os dois estavam bastante entretidos com o bate-papo. Parecia ao mestre que a jovem já havia estudado um pouco o tema – talvez na escola –, por acompanhar a explicação oferecida com certa desenvoltura. Isso pôde ser comprovado na pergunta seguinte feita ao mestre:
– Doutor Vernáculo, nunca entendi o verso “Fulguras, ó Brasil, florão da América”. O que significa?
A dúvida animou o desafiante, que respondeu com satisfação:
– Minha jovem, este verso é muito pouco conhecido, em razão de seu exótico significado. Veja: “fulguras” é verbo, na segunda pessoa do presente do indicativo de “fulgurar”, na acepção de brilhar ou cintilar; “florão”, por sua vez, significa enfeite, adorno. Portanto, a tradução é:
“Brilhas, ó Brasil, enfeite da América”.
É evidente que Osório Duque Estrada se valeu de um forte preciosismo sintático – ou “pernosticismo lexical”, para alguns estudiosos menos tolerantes – na elaboração do hino, tornando-o incompreensível para a imensa maioria da população. Todavia, o rigor vernacular do hino não pode ser considerado um obstáculo insuperável, pois não se trata de problema propriamente do hino, mas da falta de cultura que atinge o país que o entoa. Que se corrija a falta de informação que se espalha pela nação, e cantemos o hino com “conhecimento de causa”! Isso, sim, é patrioticamente necessário.
A mãe se aproximou da jovem ouvinte, cumprimentando Doutor Vernáculo.
– Olá, mestre, minha filha estava curiosa por algumas expressões do hino nacional...
O mestre interveio:
– Ah... sim! Estamos em uma agradável conversa sobre o hino...
– Aliás, Doutor Vernáculo, nosso hino é muito complicado! Precisa de “bula” pra entender! Não seria “patriotada”? Por que não adotamos a música “Aquarela do Brasil” como hino? Seria menos pomposo...
Doutor Vernáculo, que já esclarecera a prodigiosa filha, começaria agora a convencer a mãe – uma cidadã, entre tantas e tantos, que se opunha, injustificadamente, a nosso hino:
– Não devemos temer o hino, mas cantá-lo com fervor, pois se traduz em símbolo máximo da nação. Cantar o hino não é “patriotada”, mas ato de preservar nosso patrimônio cívico e histórico, indicando a soberania do nosso povo. O hino é a expressão de identidade, independentemente da condição social, raça, ou crença; por meio dele, os cidadãos se identificam como brasileiros. Quanto aos termos difíceis – observou Doutor Vernáculo – não precisamos de “bula”. É dever de todo cidadão preocupado com a linguagem a consulta a um bom dicionário... Aliás – complementou o mestre, com presença de espírito – Ary Barroso, ao escrever e musicar a imortal “Aquarela do Brasil”, em 1939, não lhe quis imprimir a feição de hino de um país, mas de música, apenas.
A mãe, agora convencida, ratificou:
– De fato, mestre, hino nacional é símbolo; música é sentido. Nossa MPB, aliás, está repleta de letras bem escritas... com sentidos variados.
E Doutor Vernáculo arrematou:
– A propósito, esteja preparada, pois não se livrará do dicionário para entender a bela canção citada: o inesquecível sambista utilizou expressões, como “Brasil trigueiro”, “mulato inzoneiro”, “merencória luz” e “morena sestrosa”. Está disposta a enfrentar a canção sem dicionário? Duvido...
O trio já se preparava para as despedidas. A filha, satisfeita com o instrutivo diálogo, aproximou-se do mestre e o agradeceu com largo sorriso. A mãe, agora mais bem instruída, ainda tentava retificar a inicial informação equivocada:
– É... Doutor Vernáculo, não tem cabimento deixarmos de bajular nosso hino. O incrível é imaginar que já houve movimentos na imprensa pra modificá-lo...
A mãe certamente mencionava o curioso episódio ocorrido em 2002, na época da Copa do Mundo, em que um certo colunista de famosa revista propôs que se abolisse o hino nas partidas de futebol, uma vez que os jogadores poderiam ter o rendimento prejudicado com a erudição da canção.
Doutor Vernáculo finalizou, com ênfase:
– Não podemos deixar o comodismo vencer o desafio do aprendizado. Cultivamos em nosso país a mania do “substituísmo”, trocando termos difíceis por outros, mudando expressões, como se estivéssemos diante de uma linguagem “mandarinesca”. Daqui a pouco, no desejo de mudar tudo, mudaremos nossos símbolos nacionais, o nome do nosso país... já imaginaram? – indagou-lhes o mestre.
A filha, ouvindo atentamente o diálogo – aliás, por ela deflagrado – complementou com hilaridade, trazendo à tona o triste episódio político do mensalão:
– Vão acabar mudando o nome de Brasil para “Mensalil”...
Todos riram da jocosidade pontual da jovem, convictos da importância cívica, histórica e gramatical de nosso hino. Aliás, nos tempos atuais, não precisamos nos afastar do hino, mas dele nos aproximar. Quem sabe assim cultuamos nosso “Brasil Trigueiro” de Barroso, sob os “raios fúlgidos” de Osório Duque Estrada.
PROF. EDUARDO SABBAG
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