O Verbo Aprazer e a Senhorinha Aprazível
Mais uma vez, o vasto universo verbal de nosso léxico convida o leitor ao conhecimento de um verbo não pouco estranho: aprazer.
O detalhe intrigante: ouve-se por aí a forma “se isso lhe aprouver...”, entretanto poucos associariam o tempo em destaque ao verbo aprazer. Não raras vezes, Doutor Vernáculo foi chamado a responder à dúvida. Na última vez, estava em plena viagem de avião e algo interessante estava por acontecer.
É que o comandante da aeronave, ao dar um aviso aos passageiros embarcados, teria se valido da expressão ora analisada. Não demorou para se ouvirem sussurros de curiosos. Os passageiros perguntavam:
– “Ele disse ‘se isso lhe aprouver’? Aprouver...mas que verbo é esse?!”
O interessante é que a dúvida parecia ter afligido mais de um passageiro. Uns opinavam sem conhecer; outros preferiam não opinar; havia até quem demonstrava, nos rápidos comentários, um bom conhecimento de verbo, porém a conclusão era inadequada...
Tudo estava sendo observado, em silêncio, pelo discreto mestre – Doutor Vernáculo. Todavia, seu silêncio teve que ser rompido. Uma senhora sentada ao seu lado lhe lançou uma pergunta:
– Por favor, o que todos comentam? Parece que foi anunciado algo importante...
Doutor Vernáculo percebeu que a senhora não havia escutado a informação. Parecia estar dormindo quando foi dado o aviso pelo comandante. Não importava. Aproveitou para lhe deixar a par do anúncio e, quem sabe, orientá-la sobre o verbo, até porque não havia encontrado uma oportunidade de aclarar a dúvida de muitos que o rodeavam.
– Sim, disse o mestre. O recado foi simples, mas o piloto usou uma expressão diferente, e todos estão tentando decifrar o seu sentido.
– Ah...qual foi a expressão? – perguntou a simpática senhora.
O mestre respondeu, com certa preocupação didática, tendo certeza que não seria compreendido também pela senhorinha.
– A expressão é “se-lhe-a-prou-ver”, respondeu soletrando, pausadamente, o mestre.
Há um dito popular que anuncia que “as surpresas acontecem quando menos se espera”. Dito e feito. A senhorinha surpreendeu o mestre:
– O verbo é “aprazer”, disse sem hesitação.
Doutor Vernáculo não se conteve:
– Puxa, a senhora conhece bem o idioma! Poucas pessoas sabem isso...
Ela, então, pôs-se a explicar:
– É que sou professora de português...aposentada – retificou.
Doutor Vernáculo, com um largo sorriso, apresentou-se:
– Que bom! Sou advogado, mas vivo da lei e... da palavra! Gosto de estudar o nosso idioma!
Ambos se divertiram com a coincidência. O verbo, todavia, voltou à tona.
– Aprazer, disse a senhorinha, tem o sentido de “causar ou sentir prazer”, sendo mais usado nas terceiras pessoas (do singular e do plural). Portanto, pode-se falar apraz, aprazia, aprazerá, aprouve, aprouvera, aprouvesse.
O mestre concordou e complementou:
– De fato, vejo que a senhora está com as regras em dia! A propósito, a forma “aprouver” – completou o mestre – indica o futuro do subjuntivo do verbo aprazer, bastante comum como verbo transitivo indireto (como em “Todas as manhãs, o sol lhe apraz.”) ou intransitivo (como em “Poucos são os comentários que aprazem.”).
O diálogo havia começado em alto nível. Não é todo dia que um verbo provoca um debate tão elitizado assim...
A falante passageira continuou a tecer suas impressões:
– O detalhe é que, para o dicionarista Houaiss, o verbo aprazer é irregular, nos tempos derivados do pretérito perfeito, apresentando formas interessantes, como aprouve, aprouvera, aprouvesse, entre outras.
O mestre concordou e mostrou à culta colega de viagem uns versos que acabara de lembrar:
– Fernando Pessoa usou este verbo em verso de “Deixemos Lídia”: “Não de outro modo mais divino ou menos / Deve aprazer-nos conduzir a vida, / Quer sob o ouro de Apolo / Ou a prata de Diana” .
Ela, aprovando a versatilidade do mestre, devolveu-lhe outra pérola de nossa mais refinada poesia. Citou “Para viver um grande Amor”, de Vinicius de Moraes. Disse, sem hesitar:
– Há também o verbo em Vinicius: “...É muito necessário ter em vista / um crédito de rosas na florista / muito mais, muito mais que na modista! / para aprazer ao grande amor...”
E o diálogo parecia ter ganhado importante significado. Era lá e cá...Um papo de “gente grande”, diriam alguns...
O tal verbo estava animando o voo, pelo menos, dos dois cultores do idioma, que mantinham elevado o estimulante debate. O mestre prosseguiu:
– Este verbo pode servir até para ajudar a conjugação de outros, como desprazer, no sentido de “desagradar”. Este deve ser conjugado como aprazer. Exemplo: O contrato não lhe desprouve, mas agradou a ele.
Ela o ouvia, atentamente, e pôde notar que o advogado não detinha uma simples curiosidade do vernáculo, mas um grande conhecimento. Elogiou-o:
– De fato, o senhor como advogado demonstra dominar bem a gramática. Se todos os advogados assim a conhecessem... Aliás, complementando o que disse, há outro verbo que pode ter a conjugação facilitada a partir do aprazer...
O mestre esperou que falasse, mas ambos responderam quase simultaneamente: Prazer!!! De fato, este verbo é sinônimo de aprazer... A senhorinha ficou empolgada e se apressou a lhe apresentar:
– O verbo prazer é sinônimo de aprazer, devendo ser usado apenas na 3ª pessoa do singular. É, igualmente, irregular. Há formas curiosas, como: praz, prazia, prouve, prouvera, prazerá, prazeria, praza, entre outras. Exemplo: “Prouvera a Deus.”, no sentido de “queira Deus, tomara, oxalá”.
Não demorou para a aeronave tocar o solo. Era a aterrissagem. Antes que se despedissem, Doutor Vernáculo fez questão de valorizar o agradável diálogo que com ela foi estabelecido.
– Meus parabéns! – disse. Com sua aposentadoria, muitos alunos deixaram de ganhar grande conhecimento. A senhora tem enorme conhecimento!
Ela, do alto de sua inteligência, percebendo a surpresa do mestre com sua sabedoria, não perdeu a chance de o surpreender mais um pouco. Parafraseando um importante escritor francês do século XVII – La Rochefoucaud –, respondeu-lhe: “É prova de inteligência saber ocultar a nossa inteligência”.
Após a despedida, o mestre pensou alto:
– Puxa! Que senhorinha aprazível!
EDUARDO DE MORAES SABBAG
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